Um amanhecer de verão na Ilha
Prof. Nílton de Oliveira Cunha*
Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, fevereiro de 2005
A lua, na fase cheia, mais e mais mergulha na sombra da nuvem informe, esmaece. A pálida claridade do luar lentamente se esvai, desaparece. Alta noite, para onde se olhe o escuro é dominante; cintilam as constelações tecidas em contas de diamante. Até que, enfim, a metamorfose vai acontecer: é chegado o momento do primeiro sinal do alvorecer. Então o deus Éos, irmão de Helius, descerra suavemente a noturna cortina para a entrada da tênue claridade matutina. E a débil luz de prata do crepúsculo derrama-se por todos os lugares; em meio à penumbra, imagens estranhas de mistério, as silhuetas de objetos vulgares. A difusa luminosidade transmuda o firmamento, dá novo brilho aos astros aparentes no momento. Nesta hora um jovem pescador, em missão diferente, sai de canoa a remar em direção à nascente. Fora incumbido pelos demais moradores de trazer o sol à vila de pescadores. Assim ordenava a crença herdada dos ancestrais, os primeiros a ali chegar, há muito tempo atrás. Segundo a tradição, era preciso trazer o sol, ao nascer, para inundar de luz e calor a vida na Barra já no amanhecer. O mitológico Caronte vivia a transportar a alma dos mortos; hoje, jovens vivem a buscar vida nos labirintos da morte; por sua vez, o humilde pescador navega ao encontro da vida: a luz do sol é o seu transporte.
Ainda não despontara o Astro-Rei no horizonte quando Éos, com seus dedos róseos, realça o brilho das estrelas remanescentes e pinta as nuvens altas de tons dourado-incandescentes. A Via Lactea mostra-se em amarelo-ouro em vez do branco, sua cor, sob o pincel mágico do deus-pintor. Em razão da luz solar, pouco a pouco fenece o brilho das Plêiades; igualmente se dissipa o fulgor das Híades. Desfiguram-se os contornos do Cão Menor; degenera a imagem do Cão Maior. Restam no céu estrelas de primeira grandeza, a compor o magnífico espetáculo da natureza. Sirius, Canopus, Rígel, Aldebaran, Achernar estão presentes neste momento único, o da aurora despertar.
A cidade ainda dormia, alheia aos movimentos da vida, às encantadoras transformações da natureza quando, de repente, o pescador solitário, extasiado, vê, diante de si, o disco de ouro do Astro-Rei ascender ao nível do mar, na plenitude de sua realeza! Parecia flutuar no horizonte líquido do imenso aquário salgado; a abóboda em azul celeste servia de fundo ao movimento ascensional do astro raiado. Ante a intensa claridade, ofuscam-se e desaparecem as últimas estrelas; hão de retornar à noite em cortejo de igual beleza, para quem sonha entendê-las. Hosanas! O encanto e a glória do Universo envolve aquele canoeiro inculto. Por tempo indizível sente o inefável enlevo do real “oculto”. O sol alça o vôo lento, singular; ilumina colinas, dunas e pradarias; reflete-se nas águas dos rios, lagoas e baías. Brilha em cada cor dos jardins, bosques e pomares; revigora animais e plantas, inspira pássaros canoros nos cantares. Em cada detalhe singelo, uma coloração nova, a todo novo instante uma nuança se renova. A melodia encantada do silêncio parece ecoar em todos os cantos, naquele momento: nas dobras dos morros e nos desvãos das matas, no murmúrio das ondas e no sibilar do vento. Casais enamorados, numa pedra rolada ou na areia da praia sentados, bem-diziam o milagre da vida, a ternura de que estavam tomados. E o pescador retorna à Vila, sentia-se aureolado; o sol segue-o no percurso, para júbilo do povoado.
É manhã, é verão, é o mar. A Ilha é um convite ao vaguear.
*Professor aposentado da UFSC; pós-graduado em filosofia da ciência.