Totalidade Vida-Natureza

Prof. Nílton de Oliveira Cunha .
Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, novembro de 2000

nocunha@mbox1.ufsc.br

Desde os confins do átomo, onde se assentam os alicerces do Universo –  as três famílias de partículas elementares, quarks e léptons, constituintes atômicos, e bósons intermediários, mediadores das interações entre partículas  – até às galáxias mais distantes, nas bordas do Cosmos, a natureza mostra um trepidante conjunto de interações dinâmicas em constante mutação.  É o pulsar do movimento universal, em cuja alternância entre ordem e caos reside a extrema vitalidade criadora do mundo natural. O supremo encanto da  vida está em ser ela nova a cada instante. Que encanto maior se haveria de esperar!?
Partículas, moléculas, células, o ser humano, um paquiderme ou o maior corpo celeste não têm existência isolada. Nossos enfoques fragmentários dos processos é que separam os fatos, intrinsecamente integrados. É o “modus operandi” do intelecto, incapaz de perceber de per si a unidade das ocorrências sem fracioná-las. A percepção integral da realidade revela a unicidade universal, expressa na totalidade “vida conjugada à natureza”, verdade maior, auto-evidente, em consonância com a qual devem estar idéias e ações humanas.
Os átomos se combinam para constituírem moléculas novas; moléculas se compõem para gerar um exemplar original da unidade biológica fundamental – a célula. As células, desde a forma mais simples à mais complexa, articulam-se para, por fim, dar-se o magnífico ato de criação: a vida vegetal e animal, os ecossistemas, os “santuários ecológicos”. Espetáculo de luz e cores, calor e movimento, som e música, miríades de configurações estéticas vivas, uma apoteose  magistral que a natureza está a nos oferecer em cada canto e a toda hora. Ao amanhecer, a luz da aurora inunda de dourado colinas e vales, rios e cachoeiras, mares e praias; árvores, folhas e frutos; pétalas de orquídeas e de girassóis. Ao entardecer, em vôos plácidos, os pássaros retornam à tepidez do ninho, embalados pelo canto de sabiás, rouxinóis, uirapurus. Peixes, em nados sinuosos, bendizem sua liberdade.  É a harmonia da  eterna dança da natureza!
No ecossistema a energia, como um sopro de vida, circula célere ao longo de uma infinidade de interações complexas, permeando os reinos mineral, vegetal e animal, seja integrando ou desintegrando elementos e processos, para que não pereça o princípio vital. Acasos e desordens geram mutações, inovações, aumento de complexidade. Mutação é reorganização, mas, se os limites biológicos são ultrapassados, degenera-se o meio natural.
Inchamento das grandes cidades, extrema concentração das populações em regiões costeiras (hoje mais da metade da população do mundo reside na faixa de sessenta quilômetros a partir da costa), ao longo de praias,  baías e estuários,  são fatores que transformam radicalmente o “habitat” da vida, com extinção de espécies raras, despejo de imensas massas de resíduos poluentes nas águas, no solo e ar. A história tem demonstrado a incúria dos povos no trato com as coisas fundamentais para a  vida sobre a Terra.
As ações dos indivíduos e sociedades estão sempre a gerar crises sobre crises;  para corrigir os males decorrentes, corremos atrás de uma técnica, uma tecnologia. Esta insensatez deriva da crença de que sempre haverá uma técnica salvadora para corrigir todas as ações danosas que cometemos. Confiamos nas técnicas até para sanar conflitos tipicamente psicológicos. Com as tecnologias aprendemos a encurtar distâncias no tempo e no espaço, melhoramos o conforto de quem pode ter acesso aos benefícios da alta tecnologia, porém a ciência e a tecnologia não têm o condão de melhorar em “essência” a qualidade das relações – dos seres humanos entre si e com a sociedade e a natureza.
Paralelamente ao progresso das ciências e tecnologias, desenvolveram-se as ideologias fundadas no lucro-usura, no juro-agiota, na concentração da renda em mãos do estado ou de particulares, tudo para aumentar a riqueza para benefício geral, é a justificativa. Um preço que se paga pelo “progressismo” desvairado é a devastadora destruição do ambiente natural. Reféns das próprias instituições ideológicas que criaram, continuam as sociedades do mundo inteiro a navegar à deriva da natureza. Esta insensatez tem um custo imensurável, que a humanidade terá de resgatar ou purgar de modo dramático.
Por sua vez, os processos de educação/aculturação em vigor limitam-se a repassar valores ideológicos, cristalizados, de geração a geração; não conseguem levar a reflexões agudas, consistentes, criativas, sobre os problemas fundamentais da vida, visando alcançar formas consentâneas de convivência com o meio natural e a sociedade. Em que pesem os preciosos ensinamentos técnicos, práticos, na vida de relação, a cultura vem eivada de ilusórios valores ideológicos também. Além disso, o imediatismo, a conveniência dita “politicamente correta”, prevalecem sobre toda formação cultural ou consciência ecológica. É isso que faz com que povos e governantes assumidos como “ecologicamente conscientes” se limitem a ações no varejo e negligenciem a degradação ambiental de grande escala.
A preservação ambiental, da biodiversidade, situa-se hoje em primeiro plano dentre os mais graves problemas humanos, mais importante até que as questões macro-econômicas. A prosseguir no atual diapasão, teremos engenhosas teorias econômicas vigorando por todo canto do mundo, porém vivendo em meio ambiente sempre mais inóspito. E dizer que o Brasil está entre os oito maiores emissores de gases poluentes na atmosfera!
Mas, é de ver que salvar a natureza significa salvar o ser humano também. A compreensão integral do processo da vida e da natureza não pode excluir ninguém. Não é natural a existência de milhões de homens e mulheres honrados sem emprego e crianças abandonadas pelas ruas, vivendo ao léu, excluídos das conquistas da civilização.
O Rotary, por natureza sensível às magnas questões que afligem a humanidade, compreendeu a gravidade do problema e criou o programa Ecologia: “Salve o Planeta Terra”, procurando enfatizar, no expressivo significado desta divisa, a magnitude do drama ecológico. O programa visa conclamar rotarianos e  clubes, em todo mundo, para uma integração de esforços com objetivo de cooperar na consecução de efetivas soluções aos problemas ambientais.
Como bem se pode perceber, o homem é o único problema real no seio da natureza, na condição de predador contumaz, seja por ignorância ou movido por cupidez e egoísmo. Seja como for, desta responsabilidade ninguém está livre, eis que, autores ou atores do processo social que somos, de um ou outro modo, tudo o que fazemos ou deixamos de fazer repercute no seio da sociedade e da natureza.
A fim de compreender em plenitude o significado das múltiplas perspectivas do reino natural, suas funções, encantos e belezas, não apenas  seu valor de uso e sua estética exterior, faz-se mister evitar as categorias ideológicas, de significado utópico. É fácil conceber uma ideologia “coerente” internamente, teoricamente. O difícil é compreender a realidade em sua precisa dimensão de verdade. Idealismos, tanto otimistas quanto pessimistas, quando adotados em substituição à efetiva percepção do real, têm-nos conduzido muitas vezes a desgraças cruéis. Só a observação direta das ocorrências de fato pode propiciar compreensão da realidade e conduzir a soluções criadoras. A compreensão e solução de um problema deriva do próprio problema, não vem de fora, do imaginário.
De outro lado, a percepção integral da realidade transcende os estreitos limites do intelecto mecanicista. O intelecto é estruturado ao modo segundo o qual se constrói um maquinismo, para funcionar sujeito a reações condicionadas, oscilando do conhecido para o conhecido; é determinista, sem a elasticidade necessária para perceber o “novo” de cada instante. Não obstante, o ser humano aspira a uma vida criadora. Por não saber como, o viver via de regra torna-se monótono, insípido, estressante. O estado de criação aflora no sublime instante em que nasce a obra de arte do grande artista, mas também pode ser permanente e manifestar-se em um simples gesto ou palavra, em casa, no trabalho ou no lazer.
O intelecto não é a única instância de razão. Empreendendo uma reflexão investigadora, fecunda, aos labirintos da consciência, haver-se-á de compreender o “background” mental, para libertar-se da subjetividade egocêntrica, dos “fantasmas” que turvam e travam o livre pensar. Então, experimenta-se “a doce leveza do ser” (“O meu fardo é leve, e meu jugo, suave.”). É a verdadeira liberdade do ser humano,  via estreita de acesso ao singular “estado de comunhão”. Superior instância de razão, de compreensão das relações individuais e sociais, a comunhão é um estado singular, “atemporal” (i.e., mente fora do tempo psicológico); é consciência holístico-racional da totalidade “vida conjugada à natureza”. Contrariamente, a ausência de comunhão impede a compreensão do significado essencial das relações com os semelhantes, as coisas e as idéias.  Quem está em comunhão está a um passo da sabedoria, da paz e de amor.