O que há de verdade no conhecimento?

Prof. Nílton de Oliveira Cunha.
Universidade Federal de Santa Catarina.
Florianópolis, 22/06/2000

nocunha@mbox1.ufsc.br

Imaginem alguém que pretendesse estudar o céu e os corpos celestes mas que ignorasse a estrutura e funcionamento do telescópio – os efeitos de refração das lentes ou de reflexão dos espelhos, erros de aberração, distorções etc. Fatalmente chegaria a conclusões muito estranhas. E o que dizer do homem que, em milênios de civilização, tenta compreender o processo da vida e do universo sem antes entender o modo de operar do seu instrumento de compreensão – a mente? Mas como seria, em geral, estruturada a mente humana? Quando nascemos, nossa mente é um livro em branco. No processo de educação e aculturação são-nos repassados informações úteis na vida de relação, mas também valores imaginários que constituem o senso comum da sociedade. Diz Albert Einstein: “Senso comum é a camada de preconceitos colocada em nossa cabeça até os 18 anos.” O senso comum é “dogmático e ávido de certezas perenptórias”, logo, presa dócil do canto de sereia dos mercadores de ilusão a serviço da dominação e da exploração, tanto material como psicológica. Na fase adulta, nova camada de condicionamentos ideológicos, que a própria pessoa se impõe, consolida a personalidade e o senso pessoal, completando a autolimitação. Por que limitar a mente se a vida é ampla, ilimitada?
Por conseguinte, a visão de mundo resulta condicionada pela estrutura da mente. O cognitivismo intelectual – comparativo, por reflexos condicionados, mecânico -, condiciona os pensamentos e, estes, os sentimentos (o coração sente o que o intelecto consente). Por necessitar de referências para conhecer, ao intelecto é inacessível a essência das coisas, ele é incapaz de “estender seu braço além do berço”. O intelecto se limita ao saber “instrumental”, útil nas relações “punctuais” – conhecimento técnico, científico, profissional e relações corriqueiras.
Depois de fracionar o evento para interpretá-lo, o intelecto tenta recompor seu sentido global por meio de modelos teóricos (método cartesiano). No caso das ciências físicas e naturais, utilizam-se modelos matemáticos; nas ciências sociais e humanas, modelos ideológicos. Todavia, ao decompor-se o processo de sentido integral, destrói-se sua “organicidade”. Por exemplo, pode-se fracionar a virtude? Virtude fracionada não é “a” virtude. É algo como o evasivo “comportamento politicamente correto”.
O sucesso das ciências físicas e naturais e das tecnologias comprova a validade da percepção segmentária no âmbito da matéria/energia. Neste campo, as relações entre variáveis no modelo matemático podem ser comprovadas em testes mensuráveis, antes de aplicarem-se as conclusões às circunstâncias de fato.
Em processos complexos, semelhantes aos sociais e humanos, há uma interação dinâmica dos fatores, ou variáveis, atuando simultaneamente, o que torna impossível a nítida distinção entre as variáveis entre si, entre fatores e produto, entre causa e efeito. Ao adotar-se um modelo (estático) para representar a realidade (dinâmica), as ciências ideológicas – sociologia, macroeconomia, ciência política, psicologia – cometem no mínimo uma impropriedade lógica.
A primeira objeção que se levanta sobre esta questão é que na concepção do modelo ideológico não interferem tão só fatos inerentes ao processo, mas também valores utópicos, idiossincrasias individuais e coletivas. Este modo de proceder não restaura o sentido de organicidade do processo original.
Outro aspecto a considerar no modelo ideológico é o “reducionismo”, i.e., uma suposição idealista de que há prevalência de um fator sobre os demais. Esta simplificação deforma a concepção, pois não há vinculação direta processo-modelo. São fatores reducionistas: fator econômico no marxismo e no capitalismo; prazer no freudismo e no hedonismo; superioridade de raça no nazismo; expontânea distribuição da riqueza no neoliberalismo (princípio dos vasos comunicantes).
Um terceiro viés no estudo do modelo ideológico é sua avaliação. Enquanto os modelos das ciências físicas e naturais e das tecnologias são avaliados em testes experimentais, antes de colocá-los em prática, o modelo ideológico não pode ser testado previamente. Só após, no contexto da vida real, é que se permite avaliação. Então, quando se notam erros “a vaca já foi pro brejo”. A desculpa que nos damos aos erros é que somos imperfeitos, precisamos evoluir. Ora, equívoco corrige-se com mais saber técnico, mais atenção. Já erro derivado de ação tendenciosa, viciosa, de má fé, não depende de evolução, mas de radical reestruturação da mente.
A ideologia do patriotismo exacerbado induziu os povos da Europa a guerras insanas durante milênios, deixando rastros de destruição, de miséria. Hoje, cansados de tantas derrotas e falsas vitórias em lutas inglórias, transcendem barreiras ideológicas, superam divergências históricas, para tentarem fazer convergir objetivos comuns, sob a égide da União Européia.
Em resumo, modelo ideológico é instrumento inadequado para exprimir processos sociais e humanos. Assim como “o homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem”, as idéias hão de servir ao homem, não o homem servir de escravo às idéias. Os sistemas ideológicos usam e abusam de abundantes contas e números, na intenção de provar que há uma lógica matemática governando o processo. Não é assim. Esses números são gerados no seio do modelo ideológico. Felizmente já se antevê, no horizonte da teoria do conhecimento, lampejos anunciando o enterro das ideologias.
O raciocínio usual, conforme o inconsistente e superficial esquema “Eu acho…Eu não acho…”, “Eu gosto…Eu não gosto…”, “Sou contra…Sou a favor…”, das relações comuns e de discursos intelectualizados, é condicionado por crenças vãs, preconceitos, e muitas vezes por motivos tendenciosos. De outro lado, julga-se de todo consistente o raciocínio fundado na lógica matemática, instrumento de razão seguro, que se resume nas regras: 1) Considerar nas análises só os dados do problema, não incluir pressupostos estranhos; 2) cada etapa do raciocínio há de ser autoconsistente e coerente com o problema total; 3) a solução do problema evidencia-se na análise, não é construída ao sabor do investigador. Vê-se, pois, que é possível usar o raciocínio matemático também nas ciências sociais e humanas.
O avanço científico no século que se finda abala os alicerces da teoria do conhecimento. Na Biologia, a noção da totalidade “organismo” sobrepõe-se aos enfoques físicos e químicos isolados; na Relatividade de Einstein, a noção de “espaço-tempo” como uma unidade integral substitui os conceitos de espaço e tempo independentes; na Mecânica Quântica, conversão mútua de matéria e energia, descontinuidade dos saltos quânticos, indeterminismo e imprevisibilidade das ocorrências intra-atômicas; na Teoria da Complexidade, o linear esquema de raciocínio baseado nas idéias de “causa” e “efeito” é superado nos problemas complexos pela noção de interação dos fatores intervenientes e pela consideração do significado integral das ocorrências.
As ciências físicas e naturais assimilaram bem as modernas concepções científicas e já passam a trabalhar com os conceitos de “totalidade”, matemática estatística, incerteza, indeterminismo, no domínio de problemas complexos. A rigor, não há “previsibilidade” nos processos, apenas tendências. Mas tendência não é destino e há mil e uma maneiras de reverter expectativas. É estranhável que as ciências do ser humano mantenham-se ainda refratárias aos modernos saberes.
Origem e sede do egoísmo, o “ego” se alimenta de ideologias. O “ego” é um conglomerado ou justaposição incoerente de idéias com denso conteúdo emocional (o “ego”, como a consciência, é seu próprio conteúdo), núcleo condicionador da psique, fator dominante nas avaliações, julgamentos e reações ante estímulos que afetam o emocional, e.g., desejos de prazer, ânsia de emoção, fugas das inquietudes, juízos de valor sobre pensamentos e sentimentos. Na raiz das reações psicológicas reside a luta do “ego”, da personalidade, por sua segurança e autopreservação. Um fato externo que ameace sua aparência de “paz” gera medo de desestruturação psicológica. Então, o “ego” busca proteger-se por duas vias: uma, as rotas de fuga para os prazeres e suas promessas de euforia enebriante; a outra alimenta o ideal de felicidade no futuro (sempre no futuro).
As fantasias e contradições próprias do “ego” projetam uma espécie de sombra sobre os fatos, que nos confundem e impedem de entendê-los com clareza. A libertação do “ego” é, pois, a primeira e última liberdade. O resto é ideologia.
Por que alimentamos a insana gula, a bebida desmedida, o consumo de fumo, a droga da droga, em síntese, os vícios, apesar dos malefícios? Não é porque o “ego” domina as reações mentais e, se acuado, torna-se inseguro, foge? Não sabemos lidar com crises psicológicas: ou sofremos ou buscamos uma fuga. Com medo, o “ego” esconde-se, usa de subterfúgios, transfigura-se tal um camaleão e não vacila em sacrificar o próprio eu físico, orgânico, para proteger-se e perpetuar-se. O medo permanente, vigilante, gera dependência, e dependência implica em medo de perder a aparente segurança da dependência. É um círculo vicioso.
As ideologias que alimentam o “ego”, a personalidade, fazem da vida humana um “jogo de faz de conta” ao levarem-nos a conviver com falsos dilemas, ambigüidades expressas; a confundir realidade aparente com verdadeira realidade, ideal do fato com o fato. P.ex., ao tomar-se o “ego” pelo ser humano integral, prazer por alegria, erotismo em lugar de amor, direito de fazer o que se quer a pretexto de liberdade, condicionamento mental simulando educação, euforia efêmera em sentido de felicidade, intelectualismo na acepção de inteligência e sabedoria.
Consideremos o prazer e a alegria. Ora, são sentimentos radicalmente distintos, mas a ideologia hedonista insiste em confundi-los a fim de tornar a ânsia de prazer uma virtude. Prazer é egoísmo, dependência do desejo, fuga no entorpecimento, alienação. Alegria é libertação mental, exaltação da vida, comunhão, sabedoria. A realização do desejo de prazer – de poder, fortuna, fama, sexo – confunde-se com felicidade. Reféns do desejo de prazer, vivemos a correr atrás de miragens imaginando-as a essência da vida.
O lema de vida que orienta o comportamento de jovens e adultos nestes tempos resume o que se disse: VIVER PARA TER, E TER PARA TER PRAZER. Não obstante, “insights” de sutil acuidade revelam, latentes na mente, capacidades extremas que permitem à humanidade conceber formas de vida muito mais sábias.
Depois de tantos condicionamentos, imagina-se o que resta da apregoada liberdade de pensar. Enquanto o homem não viver na plenitude da liberdade mental, mas escravo de uma idéia, estará em conflito, por mais honrarias que acumule.
Um enfoque holístico-racional sobre o processo mental há de levar à libertação dos grilhões do “ego”, ao “autoconhecimento”- o limiar da sabedoria (“A verdade vos libertará.”). Mente liberta de condicionamento ideológico, de preconceito, pode ascender à sublime “comunhão universal”. Comunhão é relação direta, sábia, com outras pessoas e demais coisas; é eternidade, i.e., pensamento fora do tempo psicológico. Não se limita ao racionalismo intelectual, transcende-o, para assomar ao superior cognitivismo racional. É percepção da totalidade primordial, auto-evidente – vida integrada à natureza -, referência fundamental em relação à qual há de conjugar-se tudo o que se faz sob a luz do sol ou além das estrelas; é percepção em plenitude das mais encantadoras perspectivas da vida.